segunda-feira, maio 09, 2005

Cotidiano Vil

Dois comprimidos me fazem dormir muito bem
e acordar com uma lua azul pendurada no meu portal
e uma gata morta estirada de olhos abertos bem na minha janela
entre os meus dois cães, minha guarda feroz.
Os dias trazem sempre algo da noite
esperanças e rugas misturadas com certezas absolutas
da nossa insignificância frente à imensidão
dessa misteriosa coisa que chamamos de infinito, destino ou existir.
Há uma pessoa de quem eu nem me lembro mais
a quem eu fiz um pequeno obséquio algum dia
sem generosidade nenhuma
ou a quem eu destinei as minhas ricas migalhas
com toda a indiferença que tal ato requer
mas que reza em meu nome todas as manhãs...

Outros dois comprimidos me fazem enfrentar
o fato da lua não ser azul e da gata ser cara a alguém
a quem eu não chego, em seu choro manso, entender
porque não tenho lágrimas para os meus próprios cães.
As noites trazem sempre algo do dia
incertezas e medos que se grudam à escuridão
enquanto traço planos para as batalhas que vêm por aí
como se soubesse mesmo o que tenho que fazer.
Há outra pessoa que não sabe que eu sou
de tão comum um homem raro entre os comuns
com tantos defeitos que não os consigo carregar
pois apenas humano
e que precisa de um deus que se parece comigo
e a quem não adianta nada prevenir.

Muitos outros comprimidos, mais,
guardo no bolso para o caso desse alguém aparecer...

sexta-feira, maio 06, 2005

Seria somente um escandalozinho à toa se Conhaque não fizesse todo aquele alarde e chamasse toda a vizinhança e até a polícia porque parecia um agonizante ou um ou mais cadáveres aquela coisa branca que agora estava imóvel no meio do capim do terreno baldio vizinho à casa do Delegado Rubem que posa de direito e honesto e bota a maior moral do mundo mas todo mundo sabe que não existe homem sem mancha ou sem pecado nesta vida e Conhaque mesmo sendo nome de bebida já dá uma pista do que tanto bebe e bebe um pouco mais da sua cota e não gosta quando o Delegado Rubem que apenas chama-se delegado mas nunca viu-se num papel o seu nome e reclama e chama a atenção do Conhaque na vista de toda a vizinhança porque Conhaque que mora três casas depois da sua passa todo fim de tarde meio mamado e turbinado porque toma lá uns conhaques que lhe dão o nome na venda de Seu Zé Lombriga e assovia alto demais vírgula debaixo da janela do homem.

Ritinha também seria somente a princesinha de sempre se o pai delegado não fosse tão metido e mais direito do que todo mundo e ficasse deitando regra pra todo lado e falando mal dos outros só porque se fazem coisas que ele tinha vontade mas só podia fazer escondido e não tivesse recebido em sua casa naquele dia para passar a noite uma irmã que veio de longe e um sobrinho por quem a Ritinha tinha se engraçado e não houvesse aquela obrigação de sair à noite para assistir a missa e a novena e a menina não se desculpasse pela cólica para ficar sozinha em casa e o menino não saísse no meio da missa alegando um cansaço que não sentia vírgula só de malandro.

O Delegado Rubem continuaria sendo lá seu delegado se não houvesse a coisa se encaminhado para aquele lado tendo o menino chegado em casa e a Ritinha que não sentia nenhuma cólica não tivesse lhe beijado e se ficassem só nos beijos e não tivessem passado da sala para o quarto e enfiado as mãos em tantos cantos e se as carícias tivessem se interrompido ou o menino se calado e não estivesse arfando e dizendo te amo e chamando a Ritinha para se deitar com ele naquele terreno baldio e escuro que ficava ao lado porque a qualquer momento podiam chegar e seria melhor a desculpa de ter saído para tomar sorvete do que o flagrante dos dois pelados vírgula e enroscados.

Teria o Conhaque passado direto se não tivesse se lembrado no bar de Zé Lombriga da chatice do delegado e parado com os conhaques antes que a ponta do nariz lhe sumisse que é como fica quando está mamado e não resolvesse ir para casa naquela hora ainda meio controlado e não andasse o referido Conhaque muito atento a ver tudo por onde passasse porque no escuro dera para ter medo que lhe aparecesse o endiabrado e não fosse por isso nem teria olhado para aquele escuro onde no começo achou que era reflexo da luz do poste mas não havia poste e lá no meio do capim brilhava um brilho estranho e seu coração disparou num instante talvez ele passasse se a mancha não se mexesse ou talvez não se aproximasse da cerca de arame ele Conhaque que apesar do medo e da pouca luz era capaz de ver no escuro e distinguir a ponta do rabo de um quati do de uma raposa num relance e que não tendo tomado tanto conhaque raciocinava tão exatamente quanto uma memória vírgula de elefante.

Teria até mesmo reconhecendo a cena deixado passar o já dito Conhaque se não enxergasse naquela cena a chance de esculhambar com a direitice do delegado Rubem e então Conhaque levantou o dedo e a voz e gritou acuda alguém que lá no meio alguém se contorce e fez a cara de tanto espanto e pulou de tanta ansiedade que juntou gente mas de tanta gente não tinha um só que se aproximasse e quando Conhaque olhou e certificou-se de qual era o lance ele próprio enfiou-se entre dois arames e aproximou-se sem deixar de gritar socorro acudam alguém aqui está que quase morre e umas pessoas já se adiantavam para não perder a chance quando a princesa nua e branca como a neve levantou-se e disse vírgula caralho vírgula é a ritinha fia do delegado rubem vírgula vai chamar a cidade toda para assistir é virgula e interrogação seu filho da puta!

quarta-feira, maio 04, 2005

Não me trouxesse o café na cama, oras! O meu acordar é um ritual mutante e surpreendente, que às vezes permite - ou até pede - uma coadjuvante. Não era o caso, concordo... Também, acordar com o telefone tocando é de uma estupidez desconcertante; o corpo treme, a mente, ainda em repouso, se confunde e a alma parece apressar-se para reencarnar a tempo, antes que a porta da matéria se feche. E também não precisava ficar sentada na ponta da cama, com aquele sorriso inocente irradiando por toda a face, dos olhos brilhantes às maçãs salientes, da boca pequena ao queixo delicado, e ainda tinha aquele colo que arfava sobre a bandeja enquanto ela escutava a conversa, distraidamente. Era, ainda mais, um assunto reles, sem importância. Toda a minha contrariedade naquele momento talvez não enchesse uma xícara, mas ela estava ali, olhando-me com o olhar de quem venera mas que pareceu-me apenas o olhar de uma pequena vaca, e o uniforme alvo e cheiroso que usava era abotoado na frente. Veja só, eu ainda dormia, praticamente. Nem me lembro do que aconteceu no meu último sonho, mas costumo acordar com aquela excitação matutina tão comum aos homens. E os seios que eu entrevia por entre os botões, aqueles montes doces de sedução, me pareceram tão durinhos!

Minha namorada apareceu no meio da tarde. Contou-me um sonho belo e um tanto triste. Estava ela num lugar estranho, uma sala enorme com fileiras de quatro poltronas e assistia a uma palestra. Um homem entregou-lhe alguma coisa que pôs na sua palma da mão e pediu-lhe que, por enquanto, não olhasse. Ela manteve a mão fechada o tempo todo, sem a menor idéia do que fosse. Ao sair daquele lugar estranho viu-se num amplo jardim gramado, onde as pessoas passeavam. Um anjo apareceu-lhe e parecia-se com o seu pai; com gestos revelou-lhe um segredo, sobre não gostar de alguém. Quando ficou novamente só, lembrou-se então de abrir a mão. Havia lá uma pequena flor, cuja haste ligava-se a um pedaço de galho parecido com um tronco de bambu. Aconteceu, então, do pedaço de tronco soltar-se da haste e cair da sua mão. Nesse momento, quando ela preparava-se para procurá-lo na grama aos seus pés, apareceu outro anjo que, impedindo-lhe o gesto, disse: "Não te preocupes com o que perdestes... Pois se tens o amor!". Era uma flor de cinco pétalas e - ela disse - estava um pouco amassada e tinha a cor do meu coração...

Quando fui dormir senti-me o mais feliz dos homens porque essa moça me ama. E o mais miserável, por causa da outra.